sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

VIDAS DE VENTOS E VELAS. Antônio Marcelo Carneiro

“VIDAS DE VENTOS E VELAS”
Antônio Marcelo



Dedico a você – o espetáculo da palavra na invenção do imaginário.


Para
Márcia e Marília – ambas incentivadoras desse ensaio da palavra




Apresentação



A função maior da palavra é a comunicação, e cada palavra tem seu sentido quando entrelaçada a verdade, embora emotiva. E a poesia? Lençóis dos belos amantes? É o que é. Não se explica, apenas sentimos. Magistralmente mergulha no mais profundo de nós ou passa distante.
Não existe a forma para ensinar alguém a gostar, mas a poesia é a percepção gigante dentro da função maior da palavra. Esse é o quarto livro, o verbal está em mim – não nego.
Brinco com a palavra, assim como quem canta para embalar a alma. Esse livro é apresentado pelo meu amigo e grande incentivador das artes: Eduardo Galdino, um homem sensível que conhece e valoriza os artistas e seus feitos. Também convidei Diego Landim, um jovem ator e escritor que tem o verbo lapidado assim como um cristal. São pessoas como Eduardo que nos fazem acreditar no esplendor artístico, um dia possível; e Diego representa o meu início, a minha alegria em ser escritor.
“Vidas de ventos e velas” é frágil como um coração amante. Nenhuma surpresa na forma do dizer, mas estou infinitamente aprendiz e superior a mim mesmo , na carretilha do instante – abortado ou nascido? O instante se renova, e talvez esse livro possa comemorar dez anos da primeira vez que publiquei minhas primeiras poesias. Eu comecei a escrever aos quatorze anos, dezessete anos se passaram... isso faz de mim, um autor que continua, alguém que sempre tem alguma coisa a dizer, por terminar. No geral, eu me dediquei mais ao teatro, são trinta e uma peças escritas, contos, crônicas, cartas... enfim escrevo a palavra!



O Autor.







A sombra e a luz


Uma metade de mim
é complexa imprecisa
só sabe dizer não
a outra metade submissa
e só sabe ovacionar
seus atos, seus gestos
Uma metade de mim
me alucina
a outra metade é abstrata
ritualísitca
perversa oração
Uma metade de mim
tem a cor negra
o romance do pavão misterioso
a outra metade não tem cor
é um veneno desigual
Uma metade de mim
foi dada por prazer
a outra metade que é inquietude
foi roubada
Uma metade de mim
é passional
a outra metade é valente
sangue a pulsar
na batida do tempo na sua porta
Uma metade de mim
chora a sua partida
a outra metade me dá o direito de ficar triste
e a certeza que sou fênix
Uma metade de mim
sobrevive sem o seu amor
a outra metade é dependente
concreta a doer a dor que dói
Uma metade de mim
é prostituta apanhada
e não convencida
ainda acredita no amor
a outra metade é santa e beata
não cheira a manto nem a mato
só cheira a pecado
Uma metade de mim
é conto do ouvir dizer
a outra metade a vivência
no toque da pele de tantas cores
Uma metade de mim
é horrores
a outra metade a penúltima verdade
Uma metade de mim é sociaty
a outra metade é subúrbio
beco
sangue marginal na vala da vida
Uma metade de mim
não tem fim
é um ato gigante de cenas longas
a outra metade é escandalosa
e não cala a outra metade de mim

Inspirada em uma poesia de Ferreira Gullar


A canção dos Deuses

Que os deuses cantem suas mágoas
que os deuses despertem suas iras
e tramem suas vinganças mas longe de mim...
Que os homens medievais
lancem suas tirânicas verdades
mas que não me peguem para expiação


Reflexo

A beira do cais
pernoite
nós dois
Eu lembro mais a lembrar depois

Lamento

Lamento a noite sem sono
o sono interrompido no ronco final
Lamento os poucos beijos
a boca estúpida e afoita
Lamento o que não nasceu
a saudade calada em noites quentes
Lamento a tristeza na praça
- nós dois
Lamento a hora maldosa e maldita
onde chegamos
Lamento o choro preso
a raiva estancada no tanque
Lamento a sua reserva egoísta e fria
Lamento as coisas fechadas em copas


Cartão postal

Eu sou
o moleque grande
da ponte
do pôr-do-sol
o recital
final de tarde
óculos escuros
visita histórica - muito prazer
meu endereço é a ponte
o sal
o sol posto e contemplado
a maré alta
maresia
fim de estação
até qualquer hora –inverno ou verão


Por causa de você

Por causa de você
rompe a hora morta
o nascer do próximo e pouco instante
Por causa de você
rasgado o retalho da vida
oração incompleta
mas bordada em nossas almas coincidíveis
Por causa de você
esse luxo do lixo
essa nossa história narrada a gagueira
versões dadas às línguas afiadas
Por causa de você
em poucas palavras a conta mal contada
no canto do conto
inversão do conto no canto
Por causa de você endiabradas mentes
mentalizadas na mentira
ainda tece a língua afiada
e agora fresca
Por causa de você
reluzem no relance
as pedras de várias coroas
procissões de vários deuses
a processarem seus amores
em romances épicos e efêmeros
Por causa de você
o bailado da bailarina
no balé sem regra
a própria vida
na sobra do sopro
na sombra
Por causa de você
a efervescência dos belos recifes
nós reféns da presa
que somos nós
Por causa de você
o Deus Thor Chocou as nuvens
explosão de gases
narrativo trovão
Por causa de você
a noite inteira atenta a paixão
das starlats
Por causa de você
a inteligência de um semi deus nú
jamais batizado
mas crente na semi final história de amor
Por causa de você
adentro o pântano
sou brega e em termo chique
sou dau e dou
Por causa de você
espoca o útero santo
bebo o vômito e o tanto

Martinópole

Martinópole
teu cheiro meu aroma
tua terra meu chão
tuas águas meu destino
teus cajueiros meu torrão
Martinópole
tua lagoa meu sorriso
tua barragem meus cabelos teu vento
Martinópole
em ti se confundem
meu rosto tuas lembranças
tua força meu braço
teus sonhos meus ideais
Martinópole
teu sol a chuva
o inverno belos temporais
Martinópole
é bom te ter, te ver, me perceber
Martinópole
esse grito retumbante
dentro de mim
cheio de saudade, um velho instante
vou voltar para ti
vou ser rei quando vieres a sorrir
Martinópole
estou chegando
os tempos, ou mesmo os rostos marcados
a falarem de nós
laços lençóis
Martinópole sem progresso
Martinópole velhas dores
esperando ainda o que se espera
notícias de amores
em uma velha estação
Ah, Martinópole
teu sussurro, lamentações
meu suspiro meus ais meu povo
minha gente mascarada rodando livre,
dançando nesses velhos novos mesmos carnavais
Martinópole
alegria colhida nos novos velhos repetidos carnaubais
Martinópole
te assoletro te idolatro
mas no fundo, eu sei,
tu não és o que foste – nunca mais
cadê tuas cabanas teus clubes
cadê teu mapa, teus meninos, seus hinos
tuas meninas, suas castanhas
tuas minas teus homens, suas patas
Martinópole
tuas mulheres, suas sopas,
tuas colheres teus favores
Martinópole
te quero ruflando tambores
gritando teus cantores, teus tenores
teus atores teus escritores teus artistas
e tua cultura, no mapa o que é, onde está, aonde vai chegar?
Ah, Martinópole não te engasgues nem ouses me falar
Martinópole
Cantes bem alto e alegre quando eu chegar
para rever o que eu nunca esqueci
Martinópole teu cheiro não esqueço, te peço e agradeço
não me esqueças ainda que eu padeça
Ah, Mar...ti...nó...po...le! meu canto na voz
meus deuses, meus mitos rogai por nós



Por quantos séculos

Por quantos séculos
o enigma dos deuses indecifrável?
Por quantos haras
apaziguado a imensidão dos pastos?
tumbas tombadas pela praga de lúcifer
que cairá sobre mim
antes do pôr-do-sol
antes do anoitecer
Eu fui o escolhido
para o açoite final
– o desamor

Fotografia do tempo

Sou a puta maior
desse cabaré
a orquestra não toca
nem tocará outra vez
todos parados no salão
olhem bem a dama
sem salto
dessa vez sem riso
arranhada
sangrada
riscada para sempre
dessa fútil e perdida ilusão



Insensível

Eu vou ser melhor que você
maior que o seu capricho
superior a seu desapego
Eu venço você...
Sobrevivo
você faz companhia o chapéu na cabeça
cigarro na mão
fumaça no ar para que eu esqueça
Eu vou ser infinitamente insensível
e não procurar por você
não me interessa a hora
Eu ignoro o dito
desprezo a palavra delicada
a prece talhada em nossos corações

Faróis

A cegueira encandecida dos faróis...
fachos de luzes
no beco de vidro
a espelhar a luz da vida
repousada em nós

Vitrine

Por quanto tempo
serei desimportante na vitrine
de tua insensibilidade?
Por quanto tempo
estarei a cantar a melancolia
desse desencontro?
“Qual de nós mais desesperado
na luta por qualquer causa perdida?”
sangrados
sagrados
desregrados
nesta busca desenfreada
Por quanto tempo
O brilho nesses faróis umedecidos
por tantas coisas incompreendidas?
Por quanto tempo
nós dois
deuses vencidos e não vencedores
de laços e amarras?
Qual de nós bicho mais brabo
sem pouso
sem aconchego
cúmplice do desassossego?

“ Entre aspas” – Marcelo Costa referindo-se a Causa Perdida


Desordem

Não te digo
o mistério da hora
nem o pouco perigo do isqueiro
a esquentar a cigarra
Não te digo
a ordem
nem venha o beijo a fora
só o pulsar do sangue em nós
a mim consola...


A hora da partida

Parte a noite
o navio a velas
luzes sobre mares bravios
a buscar a pernoite
de sonhos norte
errantes apreços
naus sem endereços
de esculpidas mortes


Portal

Não canto nem conto
a dor da minha partida
Sou próprio
de qualquer um impróprio
Não canto nem choro
nem olho o espelho
sou móvel
poucas vezes estático
lanço feroz o arcabuz
na própria vida
dito meia regra
quando alguns piscam
a triste partida


Talvez

Eu nem sonhava
o tal...
completo...
talvez...
incompleta vez...

Noites reinventadas

Quantas noites me senti assim
Espicaçado
Mortificado
pela palavra do deus da morte?
Os deuses castigam, são severos
Impiedosos
quando tramam suas vinganças torpes
Eu fui o escolhido
rei de uma senzala
a guardar o frio sangue
de seus flagelos e missas pagãs


Cidade dormitório


Fortaleza
terra da luz onde o brilho é opaco
Fortaleza
de falsos valores
de pobres amores
tu me rejeitas
Fortaleza
prostituta dividida entre mansões e favelas
realidades extremas de tantas barras
tantos pirambús
tantas voltas juremas
Fortaleza
chique e cafona
tu me assassinas e não patrocinas
minha arte de poesias vazadas
no centro da noite
mas renasço nos raios de teu sol
que encadeia e corta
a palavra parida na favela
Fortaleza
caldeirão de poucos milagres
tu me renegas
mas eu me vingo de ti
Fortaleza
pernoitada por reis magos
no cais de porto caído
Fortaleza
mancebo da mídia de pouca luz
expoente máximo acorrentado
“luz média”
Fortaleza
abismo dos artistas
lançados no precipício do sonho
atirados na ressaca
de um mar
sem dragão
quando não dragão sem mar

Vidas de ventos e velas

“Vidas de ventos e velas”
choram e cantam os corações
palavras fortes e fracas
de um tal poder pontiagudo
batizadas na instância de sopro
brisas e mares
“Vidas de ventos e velas” no verso
verdade condensada para nós dois
talvez depois
também palavras
enchentes de vidas
ventos a soprar meias velas

“Entre aspas” Jessê – porto de solidão – vidas de rimas e velas.

Adoravéis mitos

O mito é forte
quando permanece no segredo da morte
envolta o vulto, o véu
Os deuses perdem seus enquanto
quando mortificam seus encantos
e abrem suas chamas
e revelam suas amálgamas


Cenas improváveis

Havia na tarde
a cantilena de um amor
reciclado a paciência...
um bastão erguido a seco punho
te ter comigo para teste
um fim de herói clássico
em cenas mudas

Leopardo

Eu sou noturno
sobrevivente
gatuno
surdindo o passo
andante
rasteiro
o luxo do lixo

Tempo final

Já torrou a paciência
já nasceu a raiva
já inventei o ódio
já perdi o trêm
já concordei também
já esperei na bestialidade do engano
já pus as barbas de molho
já criei coragem
já se fez aviso
já é chegada a partida
já é dia nascido e noite rompida
já é gosto
já é pouco
já caiu o pano
é fim de comédia

Essencial

Dependente
submisso
espicaçado
ansioso
vulnerável
ao teu abraço

Perdidas ilusões

Um silêncio mortificado
na desmitificação dos mitos imitados
- nós dois insoluções
a aflição de um amor
condenado à sangue e fogo
desde a disputa de Tróia
a bela Helena já ensaiava sua
cena e me deu por herança
a sua coroa sem pedra
–no entanto nobre

Sobre nós

Não precisa dizer
a minha sentimentalidade já é relato
denúncia
escapismo
“a alma lírica, orquestrada”
foguetes fogos saltitantes
artifícios
faíscas
nós dois
em nossos olhos espelhados,
refletidos na mágica do entalo
sopro de vida
já dita e vivida
no entanto contemplada
suavizada em nossos corações...

“Entre aspas” Diogo Fontenelle ao apresentar – Ventos Impetuosos


Semi deus


Dádivas
de um Deus maior
infinito
sublime
para o semi deus (eu mesmo)
pagão de lendas e crenças
semi deus sem ira
sem eira
sem beira
apaziguado
mitológico na era do sol
costelado a estrela Guerra
a vencer batalhas
tramas
Dádivas
de um Deus maior
para o discípulo pagão
semi deus da tua ganância
semi deus de cor negra
a provocar os povos e seus conchavos
seus amores e desafetos
semi deus da palavra
pré-histórico
atual
lendário
fragmentado no amor
semi deus tatuado
acorrentado
escravizado por ti
um deus menor

Poeiras de estradas

Eu quis para sempre
esse encontro para nós
dois marcado pelo ato mais simples
pela poesia santa e ingênua
Eu quis para sempre
esse teu abraço
enrolado no meu apego maior
e nós dois triunfantes
na travessia dos lagos vilas e sossegos
Eu quis para sempre
o nosso beijo na boca olímpico
Eu quis para sempre
esse meu querer em ti querer

A beleza e o ventre

A beleza nasceu do ventre
e a verdade que éramos nós
foi fugaz
será que conseguimos mentir
com tanta verdade?
Sabe o que penso?
Que o tempo passou
e parou no repouso dos esquecidos
Tenho uma sensação densa que envelhecemos
e não resta nada para recomeçarmos
mas se a beleza nasceu do ventre
perto de um coração selvagem
a sensibilidade ainda sangra
o verso quente
todos os direitos reservados a Antônio Marcelo

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